Por: Letícia da Silva
Bastardos Inglórios, de Quentin Tarantino, é um filme genial! Tem muito ali para ensinar a quem gosta de audiovisual, extrapola o universo do cinema e dá a dimensão do quanto o diretor coloca intenção e referências em tudo o que faz. Um post recente no Instagram da firma gerou repercussão sobre outros aspectos técnicos do filme e por isso resolvi compartilhar aqui no blog um artigo que escrevi para o curso de Direção Cinematográfica da Academia Internacional de Cinema.
A cena inicial de Quentin Tarantino em Bastardos Inglórios explora não só a profundidade, como também as quebras de eixo e a intencionalidade dos enquadramentos. Assim que o alemão caçador de judeus Hans Landa entra na casa do fazendeiro francês LaPadite, temos quatro níveis de profundidade dentro do plano conjunto: a filha do fazendeiro desfocada e de costas no primeiro nível, o militar no segundo nível de profundidade, no centro da cena e iluminado, enquanto o dono da casa está deslocado à direita, no terceiro nível. Por fim, no quarto nível, do lado de fora da casa, aparecem os soldados de prontidão, o que deixa claro um elemento de tensão porque sabemos que aquelas pessoas podem invadir a qualquer momento.
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Com a escolha do diretor por esta disposição dos personagens em cena, temos a atenção claramente direcionada para o centro onde está a luz, Hans Landa e os militares ao fundo. Os moradores da casa estão à margem, fora do foco principal e sob ameaça. A construção da cena leva o espectador a criar um contexto de tensão, ainda que neste momento ainda tenhamos um caçador de judeus burocrático, amistoso, conduzindo a narrativa como se fosse uma visita protocolar e sem riscos.
Quando o copo de leite entra em cena, simbolizando a supremacia ariana e o direito que só os superiores têm de consumir a bebida que era tão cara à época da Segunda Guerra Mundial, o diretor opta por um enquadramento que coloca Hans Landa e LaPadite no mesmo nível de profundidade, já que o diálogo ainda não revela quem domina o discurso. A luz cai entre eles, iluminando mais o copo do que os personagens. Ao fundo, no segundo nível de profundidade, temos uma das filhas do fazendeiro claramente acuada, tensa, no escuro. Ainda que a conversa entre os homens neste momento seja trivial, o semblante da menina deixa claro que há medo no ar.
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Em boa parte da cena Tarantino opta por planos abertos no ambiente interno, sem revelar muito do semblante dos personagens. As mulheres são dispensadas da casa e o enquadramento na maior parte do tempo inclui Hans Landa e LaPadite. Aqui, há uma mudança de eixo para definir quem vai dominar o discurso. Close e plano fechado são usados quando o fazendeiro acende o cachimbo, símbolo de masculinidade. Ele começa a mentir e, por algum período, domina o diálogo. É quando descobrimos que o francês já passou por situação semelhante e escapou, protegendo a família judia que esconde na casa. Neste trecho da cena a câmera está à direita de LaPadite e à esquerda do militar.
Porém, o alemão abandona a postura amistosa e, no mesmo recurso de usar close e plano fechado, o diretor mostra o personagem acendendo um cachimbo ainda maior do que o do fazendeiro (clara alusão ao detetive Sherlock Holmes da literatura, que desvenda o mistério e desmascara o fazendeiro). Portanto, demonstra mais poder - e a esta altura já sabemos quem vai vencer. No momento em que Hans Landa acende o charuto, Tarantino muda novamente o eixo ao voltar para o plano conjunto.
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O fazendeiro recua e o militar revela suas verdadeiras intenções. Só então o diretor opta por sair do plano conjunto e começa a usar closes nos dois personagens em cena para aumentar a tensão e sacramentar o destino da cena. Com este novo enquadramento, Tarantino abandona a preocupação com a profundidade.
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No entanto, quando Hans Landa está enquadrado, ele aparece com o cachimbo em mãos. Já o fazendeiro está claramente abatido, com semblante muito diferente do que apresentava no início da cena, quando ainda estava esperançoso de salvar sua família e os judeus no porão. A narrativa muda muito rápido, com os soldados entrando na casa e fuzilando todo mundo, exceto Shosanna, que o militar permite que fuja. A fuga em plano aberto tem muita força dramática e permite ver a casa no último plano de profundidade.
Reconhecemos a casa porque ela também aparece intencionalmente no início da longa cena inicial de Bastardos Inglórios.
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A cena, ainda que curta, é emblemática e tem a força de se tornar um clássico do cinema. Aqui há referências a Brian de Palma e Clint Eastwood, bem à maneira que Tarantino gosta de trabalhar, porém com sua assinatura autoral inquestionável.
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